Povos indígenas isolados e a política do atual governo
Teófilo Arvelos
04/11/2021

Os povos indígenas em isolamento voluntário são caracterizados por não manterem contatos intensos ou constantes com a população não indígena, evitando, assim, encontros com pessoas de fora do seu grupo. No Brasil, há, atualmente, a confirmação de 28 desses povos, havendo, também, mais 86 registros que ainda necessitam de confirmação (AYRES, 2020). Os indígenas isolados são bastante vulneráveis a perigos como doenças e a invasão de suas terras, o que mobilizou esforços por parte do Estado brasileiro, desde a década de 1980, acerca de sua proteção, primando pelo princípio do não contato. Não obstante, medidas institucionais recentes do atual governo demonstram uma mudança de rumos da política indigenista.

 

Em 1987, por meio da Portaria Fundação Nacional do Índio (Funai) nº 1.900/87 (disponível aqui, páginas 13–14), foram estabelecidas diretrizes para a Coordenadoria de Índios Isolados (CII), primeiro órgão da Funai encarregado da proteção de indígenas em isolamento voluntário. Nela, foi estabelecida a necessidade de se garantir o pleno exercício das liberdades para esses grupos e povos, bem como de se proteger suas terras, suas culturas e sua saúde. Ademais, foi afirmado que a constatação da existência de indígenas isolados em uma dada área não determina, necessariamente, a obrigatoriedade de contatá-los, e que, paralelamente, deveriam ser desempenhados esforços de localizá-los geograficamente e de obter informações sobre eles.

 

No mesmo ano, mediante a Portaria Funai n° 1.901/87, (disponível aqui, páginas 15–19), foi instituído o Sistema de Proteção ao Índio Isolado, que deveria ser seguido pela CII. A esse sistema, foi estabelecida uma divisão em três segmentos: o de localização, o de vigilância e o de contato. Essa portaria foi posteriormente revogada, sendo substituída pela Portaria nº 290 de 20 de abril de 2000 (disponível aqui, páginas 656–657). Nessa segunda portaria, foram reafirmados todos os compromissos anteriores de proteção aos grupos e povos indígenas isolados, e foram instituídas equipes de campo responsáveis pela execução da política de localização e proteção desses indígenas, chamadas Frentes de Proteção Etnoambiental (em substituição às Frentes de Contato). Nas áreas de atuação dessas frentes, ficou instituído que é competência do Departamento de Índios Isolados promover a proteção não somente dos povos originários, mas também da fauna, da flora, dos sistemas hídricos e dos demais recursos naturais dos quais eles dependem para sua sobrevivência.

 

Nos anos seguintes, essa política indigenista foi reforçada. Em 2012, por meio do Decreto nº 7.778, de 27 de julho (disponível aqui), foi aprovado o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Funai. Nesse decreto, foi determinada como finalidade e competência da fundação a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato, reafirmando o princípio de que contatar povos isolados não é uma obrigação. Posteriormente, esse decreto foi revogado, sendo substituído pelo Decreto nº 9.010, de 23 de março de 2017 (disponível aqui). Neste segundo decreto, porém, nada foi alterado em relação aos povos e grupos indígenas em isolamento voluntário.

 

Mas, a partir do governo atual, a política indigenista tem passado por mudanças. Em dezembro de 2018, final do governo Temer, foi publicada a Portaria Conjunta nº 4.094 (disponível aqui), que define princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato. Nessa portaria, foram estabelecidos parâmetros importantes para casos de surtos e epidemias nas terras desses povos. Entretanto, na prática, alguns pontos dessa ordem não foram executados pelo governo Bolsonaro. Nas disposições finais da portaria, por exemplo, em seu artigo 22, foi determinado: “A SESAI/MS e a FUNAI, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias da publicação desta Portaria, publicarão documento orientador para a elaboração dos Planos de Contingência, estabelecimento de protocolos e atuação conjunta nas ações de atenção à saúde para os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato”. Essa medida, todavia, não foi cumprida.

 

Em 2020, já no início da pandemia, foi publicada pela Funai a Portaria nº 419, de 17 de março (disponível aqui), que estabelecia medidas temporárias de prevenção à infecção e propagação da covid-19. Nela, foi determinada, em seu artigo 40, a suspensão de todas as atividades que implicassem o contato com comunidades indígenas isoladas, exceto as que porventura fossem essenciais à sobrevivência do grupo isolado, devendo ser autorizadas, primeiro, pela Coordenação Regional.

 

Nesse sentido, em julho do mesmo ano, o presidente Jair Bolsonaro, por meio da Lei n°. 14.021 (disponível aqui), sancionada por ele, determinou: “Nos casos dos povos indígenas isolados ou de recente contato, com o objetivo de resguardar seus direitos e de evitar a propagação da Covid-19, somente em caso de risco iminente, em caráter excepcional e mediante plano específico articulado pela União, será permitido qualquer tipo de aproximação para fins de prevenção e combate à pandemia.” Porém, no artigo 13 da mesma lei, o princípio do não contato é flexibilizado: “As missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas [isoladas ou de recente contato] deverão ser avaliadas pela equipe de saúde responsável e poderão permanecer mediante aval do médico responsável”.

 

Historicamente, contudo, a presença de equipes missionárias em terras indígenas isoladas, bem como de qualquer outro grupo não indígena, sempre representou um risco biológico para os povos em isolamento, devido à transmissão de doenças, como ocorrido com os Asurini do Xingu (MATOS et al., 2021). Ainda assim, em fevereiro de 2020, a Funai nomeou Ricardo Lopes Dias, um missionário formado em teologia, para a Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, o que reflete como a política indigenista do governo atual tem se distanciado daquela dos governos anteriores. 

 

Já no dia 15 de junho deste ano, foi publicada a Portaria Funai nº 345 (disponível aqui), constituindo um grupo técnico “com o objetivo de realizar os estudos multidisciplinares de natureza etno-histórica, antropológica, ambiental e cartográfica da área denominada Piripkura, localizada nos municípios de Colniza e de Rondolândia, no estado do Mato Grosso”. A terra indígena Piripkura é atualmente ocupada por um pequeno grupo indígena isolado, cujo povo foi quase totalmente exterminado após uma série de massacres entre os anos 1970 e 1980. Segundo o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI, 2021), a constituição desse grupo técnico era de suma importância e, inclusive, determinada judicialmente, haja vista que, entre agosto de 2020 e março de 2021, foram desmatados mais de 1000 hectares dessa terra indígena. No entanto, os membros escolhidos para compor esse grupo, nomeados pelo presidente da Funai, são reconhecidamente ligados ao agronegócio, o que, ainda consoante o OPI (2021), coloca em dúvida o caráter técnico desse grupo.

 

Outro ponto da política indigenista que vem sendo alterado no governo atual diz respeito à proteção das terras indígenas de grupos em isolamento. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA, 2021), em dezembro deste ano e em janeiro do ano que vem, vencerão as portarias que garantem a proteção de três terras indígenas em que vivem povos isolados: a Jacareúba/Katawixi, no Amazonas, a Pirititi, em Roraima, e a Ituna/Itatá, no Pará. Simultaneamente, ruralistas que apoiam o governo federal têm exercido pressão para que essas portarias não sejam renovadas, gerando um clima de incertezas e dúvidas acerca do futuro dessas terras (ISA, 2021).

 

A situação atual dos povos indígenas em isolamento voluntário agrava-se, também, com a possível aprovação da tese do marco temporal, apoiada pelo presidente Jair Bolsonaro, a qual está sendo julgada pelo STF. (Para saber mais sobre esse tema, clique aqui a fim de ler texto elaborado por este Observatório.) Conforme Amorim (2017), as políticas indigenistas devem considerar que os povos indígenas isolados são extremamente vulneráveis politicamente, pois não se manifestam por meio de mecanismos representativos comumente aceitos pelo Estado, como associações ou assembleias, por exemplo, não se expressando acerca de medidas públicas que os afetem.

Referências

AMORIM, F. F. Povos indígenas isolados no Brasil e a política indigenista desenvolvida para efetivação de seus direitos: avanços, caminhos e ameaças. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, v. 8, n. 2, p. 19-39, 2017. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/ling/article/view/16298. Acesso em: 15 out. 2021.

 

AYRES, R. S. M. C. Os Povos Indígenas Isolados e a Política de não Contato Frente ao Risco de Genocídio em Tempos de Pandemia. Vukápanavo: Revista Terena, v. 3, p. 129-154, nov. 2020. Disponível em: https://ds.saudeindigena.icict.fiocruz.br/handle/bvs/4183. Acesso em: 14 out. 2021.

 

ISA. Alerta: isolados de quatro terras indígenas sofrem grave risco de extermínio. 2021. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/alerta-isolados-de-quatro-terras-indigenas-sofrem-grave-risco-de-exterminio. Acesso em: 15 out. 2021.

 

MATOS, B. A. et al. Violações dos direitos à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. Mundo Amazônico, v. 12, n. 1, p. 106-138, 2021. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/40503. Acesso em: 14 out. 2021.

 

OPI. Nota de Repúdio sobre a Portaria da Funai que Nomeia Servidores Ligados ao Agronegócio para Coordenar o GT de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Piripkura, ocupada por grupo indígena isolado, no Mato Grosso. 2021. Disponível em: https://povosisolados.com/2021/06/24/nota-de-repudio-sobre-a-portaria-da-funai-que-nomeia-servidores-ligados-ao-agronegocio-para-coordenar-o-gt-de-identificacao-e-delimitacao-da-terra-indigena-piripkura-ocupada-por-grupo-indigena-isolad/. Acesso em: 14 out. 2021.

 

OVIEDO, A. Os povos indígenas isolados e as obras de infraestrutura que ameaçam seus territórios. Instituto Socioambiental, São Paulo, 2018. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/prov0113.pdf. Acesso em: 14 out. 2021.