A tese do marco temporal no entendimento jurídico
Teófilo Arvelos
24/09/2021

Desde o dia 22 de agosto deste ano, milhares de indígenas têm protestado em Brasília contra a tese do marco temporal, que está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), de 22 a 28 de agosto, semana em que a Suprema Corte deu início ao julgamento, mais de 6 mil indígenas de 176 etnias de todas as regiões do país se reuniram no acampamento “Luta pela Vida”, na capital. Considerada a maior mobilização indígena dos últimos 30 anos, a manifestação, além de acompanhar o julgamento no STF, também teve como objetivo denunciar as medidas e projetos anti-indígenas do governo federal e do congresso nacional (APIB, 2021).

 

A tese do marco temporal teve origem em março de 2009, quando o STF concluiu o julgamento da Petição 3.388-4/RR, que analisava o caso da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde ocorria um conflito entre indígenas e agricultores. Na ocasião, ficou instituída essa tese, concebida pelo ex-ministro Carlos Ayres Britto, determinando o dia 5 de outubro de 1988, em que foi promulgada a Constituição Federal, como data condicionante para verificação da posse ancestral da comunidade indígena naquela terra (STF, 2009). Ao todo, no processo, foram propostas 19 condicionantes para a demarcação da referida TI, a fim de, em teoria, regular a ocupação dos indígenas em territórios da União e garantir a soberania nacional sobre as terras demarcadas (SOUSA e VAZ, 2018).

 

A princípio, esse entendimento do STF seria aplicado apenas ao caso da TI Raposa Serra do Sol, como consta na própria decisão, em que foi dito que esta não tinha força vinculante em relação aos demais casos de demarcação de terras indígenas no país (BRASIL, 2009). Porém, em julho de 2017, a Advocacia-Geral da União (AGU) publicou o Parecer nº 001/2017, determinando que a Administração Pública Federal, direta e indireta, deveria observar, respeitar e fazer cumprir as condições preestabelecidas na Petição 3.388-4/RR em todos os processos de demarcação de TIs no Brasil (AGU, 2017).

 

Em decorrência desse parecer, há, atualmente, cerca de 30 processos de demarcação de terras indígenas paralisados no Ministério Público Federal (MPF), à espera de uma definição conclusiva por parte do STF. Paralelamente, tramita na Câmara o PL 490, de 2007, que pretende dificultar a demarcação de terras indígenas, utilizando como instrumento o marco temporal.

 

Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 231, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (BRASIL, 2016, p. 133) Na Carta Magna, com efeito, não há determinação de qualquer data para esse reconhecimento. Nesse sentido, para as pesquisadoras em direito Fontes e Marques (2021, p. 5), a adoção do marco temporal não leva em conta “as diversas violações sofridas pelos povos indígenas desde o período colonial até o ano de 1988, desconsiderando as remoções forçadas durante o referido lapso temporal.”, como as “graves violações de seus direitos humanos no período entre 1946 e 1988” (que antecedem a promulgação da CF atual), reveladas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2014, p. 204), o qual apontou que estas “Não são esporádicas nem acidentais [...]: elas são sistêmicas, na medida em que resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões.”

 

Atualmente, dentre os processos de demarcação de TIs parados no MPF, destaca-se o caso dos indígenas Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina. As terras desse povo foram reivindicadas pelo Instituto do Meio Ambiente do estado, e o embate acha-se agora em julgamento pelo STF, cujo desfecho deve definir, conclusivamente, sobre a procedência ou não da tese do marco temporal.

 

No dia 9 de setembro deste ano, o ministro Edson Fachin, relator do processo, proferiu o primeiro voto do STF sobre o caso, posicionando-se contrário ao marco temporal. Para ele, “A demarcação não constitui a terra indígena, mas apenas declara que a área é de ocupação pelo modo de viver indígena: [...] Logo, a posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe da conclusão ou mesmo da realização da demarcação administrativa dessas terras, é direito originário das comunidades indígenas, sendo apenas reconhecimento, mas não constituído pelo ordenamento jurídico.” (FACHIN, 2021, p. 41-42) O ministro também argumentou que “É preciso que se reconheça que a decisão tomada na Petição nº 3.388 [caso da TI Raposa Serra do Sol], longe de obter a pacificação propugnada, acarretou como consequência verdadeira paralisação das demarcações de terras indígenas no País, [...] com acirramento dos conflitos e piora sensível da qualidade de vida dos índios no Brasil.” (FACHIN, 2021, p. 30)

 

Não obstante, no dia 15 de setembro, o ministro Nunes Marques votou a favor da tese, afirmando que “a decisão do STF no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3388), em que foi adotado o marco temporal, é a solução que melhor concilia os interesses do país e os dos indígenas.” (STF, 2021) Ele também defendeu que “a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, sendo necessária a comprovação de que a área estava ocupada na data da promulgação da Constituição ou que tenha sido objeto de esbulho, ou seja, que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de conflito pela posse.” (STF, 2021) No mesmo dia, com o placar empatado, a sessão foi suspensa, após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, não havendo, ainda, novo prazo para a retomada do julgamento.

 

Em junho deste ano, quando o julgamento também estava pautado (antes de ele ter sido adiado para agosto), a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou um memorial contrário à tese. No documento, foi argumentado que o direito das comunidades indígenas sobre suas terras é “congênito e originário”, “independentemente de titulação ou reconhecimento formal” e que “há de considerar a legislação vigente à época da ocupação”, apontando que “A demarcação é ato de mero reconhecimento (declaratório) dos direitos originários dos índios sobre suas terras; logo, sem natureza constitutiva” (PGR, 2021, p. 7).

Referências

AGU. Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU. 2017. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/19185923/do1-2017-07-20-parecer-n-gmf-05--19185807. Acesso em: 23 set. 2021.

 

APIB. STF dá sequência ao julgamento sobre o marco temporal nesta quarta, 15. 2021. Disponível em: https://apiboficial.org/2021/09/14/stf-da-sequencia-ao-julgamento-sobre-o-marco-temporal-nesta-quarta-15/. Acesso em: 16 set. 2021.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil [1988]. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 23 set. 2021.

 

COMISSÃO Nacional da Verdade. Violações de direitos humanos dos povos indígenas. In: _____. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, vol. II, 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%205.pdf. Acesso em: 23 set. 2021.

 

FACHIN, E. Recurso Extraordinário 1.017.365 Santa Catarina [Voto]. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/fachin-indios1.pdf. Acesso em: 23 set. 2021.

 

FONTES, I. T. M.; MARQUES, C. Povos originários e territorialidade: intersecções entre a Tese do Marco Temporal e a efetivação da posse tradicional indígena. HumanÆ, v. 15, n. 1, p. 1-20, 2021. Disponível em: https://revistas.esuda.edu.br/index.php/humanae/article/view/791. Acesso em: 23 set. 2021.

 

PGR. Memorial [Recurso Extraordinário 1.017.365/SC]. 2021. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Memorial_RE1017365_Tema1031_Possedeareasdetradicionalocupacaoindigena_FRS_MRG_MMF.pdf. Acesso em: 23 set. 2021.

 

SOUSA, L. R.; VAZ, C. A. C. O caso Raposa Serra do Sol segundo o direito como integridade. In: CARMO, V. M.; CHAVES, V. F.; ROCHA, J. C. S. (coord.). Direito e Sustentabilidade I [Recurso eletrônico on-line]. Florianópolis: CONPEDI, 2018. Disponível em: http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/0ds65m46/38nlxj46/9qYTD7H3YvhW8YZf.pdf. Acesso em: 23 set. 2021.

 

STF. Marco Temporal: para ministro Nunes Marques, data de promulgação da Constituição define ocupação tradicional. 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=473051&ori=1. Acesso em: 23 set. 2021.

 

STF. Petição 3.388/RR. Relator: Ministro Carlos Britto. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, Brasília. 3 de mar. 2009. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/3817597/peticao-pet-3388. Acesso em: 23 set. 2018.