Desmatamento e invasões na TI Krĩkati
Teófilo Arvelos

No Maranhão, abrangendo áreas dos municípios de Montes Altos, Amarante do Maranhão, Sítio Novo e Lajeado Novo, está situada a TI Krĩkati, importante terra indígena desse estado que abriga os Krĩkati, grupo indígena pertencente aos Timbira, conjunto de povos que compartilham a língua homônima. Os Krĩkati tiveram suas terras invadidas por fazendas de gado desde o século XIX, e seus direitos territoriais só foram plenamente reconhecidos pelo Estado brasileiro em 2004, com a homologação da TI, depois de décadas de conflitos que devastaram os seus recursos naturais, como matas e peixes. Hoje, procuram dar curso ao seu modo de vida e reparar os danos causados pelos não indígenas em seu território.

 

Imagem 1. Localização da TI Krĩkati (em vermelho)

Imagem 1. Localização da TI Krĩkati (em vermelho)

Elaboração: Teófilo Arvelos    
Fontes: IBGE, Funai, Positron, AutoNavi Basemap

 

A história dos Krĩkati em seu território é marcada por processos de deslocamento, dispersão e concentração. Em meados do século XIX, muitas fazendas de gado cercavam suas terras. Os animais invadiam seu território, e proprietários rurais desmatavam a floresta para destinar novas áreas à pecuária. Vendo seus recursos naturais diminuírem com as invasões, os indígenas, como forma de protesto, mas também de sobrevivência, começaram a eventualmente abater reses que se aproximavam de suas aldeias (CTI, 2006; CORRÊA, 2014).

 

Nesse contexto, em 1962, devido ao abate de gado, os fazendeiros ameaçaram os Krĩkati, exigindo que o então prefeito de Montes Altos tomasse providências severas contra os indígenas. Em resposta, o político convocou uma reunião na prefeitura, em que estiveram presentes representantes Krĩkati de todas as aldeias existentes na época (Baixa Funda, Cabeceira das Cabras, Bateia e São José) e os fazendeiros. No encontro, foi estabelecido que os indígenas deveriam receber uma cabeça de gado para ser consumida todo o ano por eles, e, em troca, deveriam parar de matar animais dos fazendeiros. O prefeito aconselhou, também, que todos os Krĩkati vivessem juntos em uma só aldeia, a fim de facilitar o trato com a prefeitura — ao passo que acenava para a possibilidade de alguma assistência (CTI, 2006). Ficou legitimada, desse modo, a continuação da atividade pecuária em terras indígenas.

 

A ideia da concentração dos Krĩkati em uma só aldeia agradava não só a prefeitura, mas também os invasores. Reunidos em apenas uma localidade, a dimensão do território perderia força e este se tornaria mais desprotegido. Nesse sentido, Frei Aristides, missionário italiano que acabava de chegar a Montes Altos, abriu uma escola na aldeia de São José com o compromisso de que todas as crianças Krĩkati estudassem nela. A referida escola foi, institucionalmente, o principal mecanismo utilizado pelos políticos regionais para combater a pluralidade de pequenas aldeias, que dificultava a ocupação plena de parcelas do território Krĩkati pelos fazendeiros vizinhos (CTI, 2006).

 

Em 1979, os Krĩkati ainda habitavam três pontos distintos de seu território: a aldeia São José, a aldeia Bateia e a aldeia Areia. Mas, já a partir de 1980, os Krĩkati estavam todos concentrados na aldeia São José, por força das pressões exercidas pelos políticos de Montes Altos, mas também pela Funai (CTI, 2006). Antes de isso ocorrer, porém, os indígenas já reivindicavam a demarcação do seu território. Frente à luta dos Krĩkati, a Funai constituiu um grupo de trabalho que definiu, em 1976, uma área de 62.350 hectares. O limite proposto pela Funai desconsiderou por completo as reivindicações dos Krĩkati anteriormente postas em carta e levadas ao presidente da Funai, deixando de fora espaços importantes para esse povo (MIRAS; CORRÊA, 2018).

 

A proposta da Funai de 62.350 ha não foi aceita, nem pelos Krĩkati, nem pelos fazendeiros. Estes enviaram, em 1976, documentação aos gabinetes do então ministro do Interior e do presidente da Funai sugerindo alternativas à demarcação da TI. Argumentavam que fosse estudada a possibilidade de transferir os indígenas para o município de Amarante, ou, quando muito, demarcar uma área de no máximo 20 mil hectares (MIRAS; CORRÊA, 2018). Assim, em 1979, a Funai determinou a realização de novo grupo de trabalho, cujos resultados foram mais uma vez contestados. Em 1981, os fazendeiros entraram com uma ação na Justiça que resultou na suspensão da demarcação administrativa da TI Krĩkati — uma vitória para eles, que passaram a agir de modo mais intenso para garantir a propriedade da terra. Depois disso, seguiu-se ainda uma série de impasses e disputas, de modo que a integridade da TI, em sua área total de aproximadamente 145 mil hectares, só foi finalmente declarada como de posse indígena permanente em 1992 — o que não significou, contudo, a retirada dos fazendeiros (MIRAS, 2015; CIMI, 2022). O processo de extrusão das centenas de ocupações de não indígenas somente iniciou em 1999, com o pagamento de benfeitorias. No entanto, a extrusão total dos invasores até hoje ainda não se efetivou (CIMI, 2022). 

 

Esse quadro histórico de disputas e invasões por parte de fazendeiros teve reflexos drásticos na paisagem. Atualmente, a terra indígena acumula mais de 27 mil hectares desmatados. O gráfico a seguir apresenta histórico recente do desmatamento.

 

Gráfico 1. Área total desmatada por ano

Gráfico 1. Área total desmatada por ano

Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)    
Elaboração: Instituto Socioambiental (ISA)

 

Percebe-se, assim, que a homologação da TI, em 2004, não freou de imediato o desmatamento — ao contrário: em resposta a ela, os fazendeiros intensificaram-no ainda mais. Apenas a partir de 2010 observou-se uma queda significativa do desflorestamento, que, contudo, foi retomado com intensidade em 2019, uma vez que o processo de extrusão dos não indígenas foi paralisado, a partir de determinação da Justiça de realizar audiências de conciliação entre os envolvidos. Essa situação judicial, entretanto, não avançou, agravando as invasões sobre o território, a expansão de áreas cultivadas e a construção de novas casas pelos fazendeiros, o cercamento de áreas que inibem o trânsito dos indígenas em seu próprio território, as ameaças constantes contra os indígenas e a retirada dos marcos de demarcação (CIMI, 2022).

 

Outro reflexo do histórico de desmatamentos e da criação de pastagens é o aumento do número de focos de calor na terra indígena, por substituírem uma vegetação úmida e densa, característica da área de transição entre os domínios morfoclimáticos amazônico e do cerrado, na qual se situa o território, por outra, seca e esparsa. Em 2020, de acordo com um levantamento da Global Forest Watch (GFW), a TI Krĩkati integrou o ranking dos territórios indígenas mais afetados pelo fogo no Brasil, com 1.482 focos de incêndio, num crescimento de 290% em relação a 2019. Nos anos seguintes, esse número diminuiu, devido ao crescimento da brigada indígena; todavia, ainda o fogo é uma ameaça constante ao território (RIBEIRO, 2022). No gráfico a seguir, tem-se comparativo do número de focos de calor nos últimos 24 meses.

 

Gráfico 2. Focos de calor: comparativo dos últimos 24 meses

Gráfico 2. Focos de calor: comparativo dos últimos 24 meses

Fonte: INPE    
Elaboração: ISA

 

A imagem a seguir, correspondente à data de 21/07/2022 e produzida por meio de operações com bandas do satélite Sentinel-2, mostra espacialmente a situação de queimadas da terra indígena. Trata-se de um NBR — Índice de Queimada por Razão Normalizada. Áreas em cor preta, circuladas em vermelho, representam áreas queimadas; em cor cinza escuro, áreas com grande potencial de queimada ou que se recuperam de queimada relativamente recente; em cor cinza claro, áreas com baixo risco de queimada.

 

Imagem 2. NBR da TI Krĩkati

Imagem 2. NBR da TI Krĩkati

Elaboração: Teófilo Arvelos    
Fontes: Sentinel-2, Funai

 

Não obstante, além do desmatamento e dos focos de calor, é também importante observar a recuperação das áreas desmatadas, que não consta nas imagens e gráficos acima. Utilizando-se duas imagens de satélite, uma de 27/07/2017 e outra de 21/07/2022, é possível produzir uma terceira imagem, resultado da subtração dos seus respectivos NDVIs (Índices de Vegetação da Diferença Normalizada). Na imagem abaixo, áreas com cor verde apresentam recuperação significativa de vegetação no período em questão (2017 a 2022); com cor vermelha, perda; com cor branca ou próxima de branca, conservação.

 

Imagem 3. Diferença de NDVI (2022-2017)

Imagem 3. Diferença de NDVI (2022-2017)

Elaboração: Teófilo Arvelos    
Fontes: Sentinel-2, Funai

 

Nota-se, assim, que nos últimos cinco anos, a despeito da ainda presença constante de invasores, houve predomínio da conservação e da recuperação florestal na terra indígena, resultado dos esforços desempenhados pelo povo Krĩkati em defesa de seu território. Por fim, a imagem individual do NDVI de julho de 2022 encontra-se a seguir. Ela retrata o cenário atual das coberturas vegetais na TI. Os valores de NDVI variam de -1 a +1, sendo que números próximos a 1 representam maior densidade de cobertura vegetal. No padrão de cores em tons verdes atribuído à imagem abaixo, a cor verde escura indica vegetação densa; a cor verde clara, vegetação esparsa.

 

Imagem 4. NDVI de 21/07/2022 da TI Krĩkati

Imagem 4. NDVI de 21/07/2022 da TI Krĩkati

Elaboração: Teófilo Arvelos    
Fontes: Sentinel-2, Funai

 

Ficam visualmente evidentes, dessa forma, os danos ecológicos e socioterritoriais causados pelas invasões dos fazendeiros ao longo de décadas de impunidade, especialmente na metade sul da terra indígena. Ao mesmo tempo, os esforços de recuperação e proteção do território pelo povo Krĩkati ecoam na TI, manifestando-se espacialmente na recuperação de áreas florestais e no uso responsável dos seus recursos.

Referências

CENTRO de Trabalho Indigenista (CTI). Estudos de complementação dos impactos socioambientais da UHE Estreito nas terras indígenas Kraolândia, Apinajé, Krĩkati e Governador. 2006. 282 p. Disponível em: https://biblioteca.trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/sites/5/2018/06/Estudos_Estreito-_0.pdf. Acesso em: 4 ago. 2022.

 

CONSELHO Indigenista Missionário (Cimi). Processo de desintrusão da Terra Indígena Krikati ganha força após pedido de liminar do MPF/MA. Disponível em: https://cimi.org.br/2022/06/processo-de-desintrusao-da-terra-indigena-krikati-ganha-forca-apos-pedido-de-liminar-do-mpf-ma/. Acesso em: 14 ago. 2022.

 

CORRÊA, K. N. F. Processo de territorialização Krikati: dinâmica de expansão e retração. 29a Reunião Brasileira de Antropologia, 3-6 de ago. de 2014, Natal. Anais. Disponível em: http://www.29rba.abant.org.br/resources/anais/1/1401737790_ARQUIVO_PROCESSODETERRITORIALIZACAOKRIKATI-dinamicadeexpansaoeretracao.pdf. Acesso em: 4 ago. 2022.


MIRAS, J. T. De terra(s) indígena(s) à Terra Indígena: o caso da demarcação Krĩkati. Dissertação (mestrado em antropologia social). Universidade de Brasília, Brasília, 2015. 140 p. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/20130. Acesso em: 4 ago. 2022.


_____.; CORRÊA, K. N. F. A Terra Indígena Krĩkati, a morosidade do Estado e a vida (im)possível dos índios. Revista Pós Ciências Sociais, v. 15, n. 29, p. 85-112, 2018. Disponível em: https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/8498. Acesso em: 4 ago. 2022. 
 

RIBEIRO, M. F. Com ameaças crescentes a seus territórios, mulheres indígenas atuam como brigadistas para ‘acalmar’ o fogo. Repórter Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2022/04/com-ameacas-crescentes-a-seus-territorios-mulheres-indigenas-atuam-como-brigadistas-para-acalmar-o-fogo/. Acesso em: 14 ago. 2022.