A Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão temporário criado em 2011 no governo de Dilma Rousseff para investigar graves violações de direitos humanos no Brasil ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, publicou, em 2014, um importante relatório final de suas pesquisas, no qual foram denunciadas violações aos direitos humanos dos povos indígenas, especialmente no capítulo 5 do volume II desse documento, “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” (disponível aqui), e no capítulo 14 do volume I, “A Guerrilha do Araguaia” (disponível aqui). Nesse âmbito, o presente texto propõe-se a sintetizar os resultados dessas investigações da CNV, bem como indicar outras referências bibliográficas relevantes para aprofundamento das questões indígenas levantadas no relatório.
A começar pelo capítulo 14 do volume I, a CNV aborda os acontecimentos trágicos da Guerrilha do Araguaia, ocorrida na Amazônia brasileira de 1967 a 1974, trazendo à tona agressões cometidas contra camponeses e indígenas. Durante essa guerrilha, o povo Aikewara, do Pará, foi mantido cativo pelo exército brasileiro em sua própria aldeia e submetido a privações, torturas e estupros, além de ter seu paiol e suas habitações queimadas (CNV, 2014). O relatório também demonstra que os homens dessa comunidade foram obrigados coercitivamente a servirem de guias para o exército, dado o conhecimento profundo que tinham sobre a floresta, enquanto algumas mulheres, devido ao estresse, ao pânico e ao medo da situação, sofreram abortos ou perda de filhos nascidos prematuramente (CNV, 2014).
No capítulo 5 do volume II, a Comissão Nacional da Verdade (2014, p. 204) aponta que “Não são esporádicas nem acidentais essas violações [aos direitos humanos dos povos indígenas]: elas são sistêmicas, na medida em que resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões”. Com efeito, a referida comissão estimou que “ao menos 8.350 indígenas [foram] mortos no período de investigação da CNV [1946–1988], em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão” (CNV, 2014, p. 205).
Uma das principais fontes de pesquisa que a CNV usou para investigar as violências aos povos originários foi o chamado Relatório Figueiredo (disponível aqui), documento de mais de 7 mil páginas e 30 volumes produzido em 1967 pelo procurador Jader de Figueiredo Correia a pedido do ministro do interior Afonso Augusto de Albuquerque Lima, redescoberto em 2012. Nele, são descritas violências praticadas por latifundiários brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) contra povos indígenas ao longo das décadas de 1940 a 1960, como “a introdução deliberada de varíola, gripe, tuberculose e sarampo entre os índios” (CNV, 2014, p. 207). Outra forma de violência foi o esbulho de terras indígenas (TIs) [1], compreendido como o ato de usurpação dessas terras, privando ou espoliando os povos indígenas de sua plena posse. Dentre os esbulhos cometidos no período investigado, destaca-se o caso da construção da usina de Itaipu, concluída em 1982, que provocou o alagamento de TIs Guarani no oeste do Paraná (CNV, 2014).
Acerca do Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001/1973, disponível aqui), a CNV (2014, p. 210) expõe: “Vários dos seus artigos tornam legais, sob condições restritivas (que não serão respeitadas), práticas correntes e denunciadas desde o SPI. O artigo 43 estabelece a ‘renda indígena’, legalizando assim a exploração de madeira e outras riquezas das áreas indígenas.” [2] O referido estatuto determina que a renda indígena resulta “da aplicação de bens e de utilidades integrantes do Patrimônio Indígena, sob a responsabilidade do órgão de assistência ao índio” (BRASIL, 1973). Ao mesmo tempo, a Lei nº. 6.001/1973, em seu artigo 20, torna possível a remoção de populações indígenas por imposição da segurança nacional, a fim de implantar obras públicas de interesse do desenvolvimento nacional. No entanto, o relatório da CNV (2014, p. 211) expõe que o “que se pode entender por segurança nacional e por desenvolvimento é deixado vago, mas será usado na tentativa de proibir, na década de 1980, a demarcação de terras indígenas na faixa de fronteira. A possibilidade de remoção é prevista apenas em caráter excepcional, [...] uma vez provada a inexistência de alternativas, e prevê realocação em áreas ecologicamente adequadas, retorno quando possível e ressarcimentos. Essas condições e ressarcimentos não serão observados na prática, como ocorreu com os Tapayuna e os Panará, por exemplo”.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade também analisa a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967. A CNV aponta que a instituição desempenhou, em várias ocasiões, ações e omissões deliberadas contra os povos indígenas que, em princípio, deveria defender [3]. Como exemplos, destacam-se o caso de remoção dos povos Kaiowá e Guarani, para a qual a Funai disponibilizou veículos, motoristas e gêneros alimentícios, e o caso da presença de posseiros na reserva Kadiweu, em que essa fundação e o SPI agiram para “legalizar” o arrendamento de áreas na TI (CNV, 2014).
A CNV também demonstra que, entre 1946 e 1988, foram exercidas desagregações sociais e extermínios contra povos indígenas. Seu relatório final cita o extermínio dos Xetá, no Paraná [4]. “A década de 1950 é marcada por uma sistemática de sequestros de crianças Xetá por fazendeiros e funcionários das colonizadoras, prática que passa a ser adotada pelo próprio SPI. Entre as décadas de 1950-1960, diversas crianças Xetá são retiradas de suas famílias à força e ‘distribuídas’ entre famílias não indígenas, renomeadas e igualmente forçadas a assumir novos hábitos.” (CNV, 2014, p. 224) A comissão também aborda as tentativas de extermínio dos Tapayuna, no oeste de Mato Grosso, entre 1953 e 1971 [5]. “Sua população, calculada pela Funai na década de 1960, era de cerca de 1.220 pessoas. Dizimados por envenenamento, armas de fogo, gripe e remoções forçadas, restaram, 20 anos após o contato, cerca de 40 indivíduos da etnia.” (CNV, 2014, p. 227)
O capítulo 5 do volume II do relatório final da CNV conclui que, “do ponto de vista dos governos militares e também de uma parcela do empresariado brasileiro, os índios estavam explicitamente excluídos tanto da condição de cidadãos brasileiros que deveriam ser levados em conta nos projetos governamentais, em sua diferença, quanto de eventuais benefícios que o ‘desenvolvimento do país’ poderia trazer às suas populações” (CNV, 2014, p. 251). O relatório também apresenta uma série de recomendações a serem seguidas pelo Estado brasileiro, como um pedido público de desculpas aos povos indígenas, a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade para o prosseguimento das investigações sobre as violações de direitos humanos contra esses povos e o fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde das comunidades indígenas.
[1] Para conhecer mais sobre a questão dos esbulhos de terras indígenas abordada no Relatório Figueiredo, indica-se: BELTRÃO, J. F.; CARDEAL, P. V. N. Povos indígenas, esbulho territorial e anos de chumbo: leituras do Relatório Figueiredo. Espaço Ameríndio, v. 12, n. 2, p. 290-312, 2018. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/83499. Acesso em: 30 set. 2021.
[2] Para entender melhor as implicações da renda indígena, recomenda-se: SILVA, K. et al. Tutela, classificações e prática da renda indígena no Relatório Figueiredo: algumas considerações sobre processos de desumanização dos povos indígenas na gestão do serviço de proteção aos índios. Espaço Ameríndio, v. 12, n. 2, p. 314-341, 2018. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/83576. Acesso em: 30 set. 2021.
[3] Para entender mais sobre as contradições da Funai e do SPI, indica-se: BARBOSA, R. L. O Estado e a questão indígena: crimes e corrupção no SPI e na Funai (1964-1969). Dissertação (Mestrado em História). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pernambuco, Recife, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/23336. Acesso em: 30 set. 2021.
[4] Para conhecer mais sobre as violências contra os Xetá, bem como a resistência e a memória desse povo indígena, recomenda-se: MARINHO, R. F. Os Xetá e suas histórias: memória, estética, luta desde o exílio. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. Disponível em: https://www.acervodigital.ufpr.br/handle/1884/62014. Acesso em: 30 set. 2021.
[5] Para conhecer a trajetória de remoção compulsória dos Tapayuna no período da Ditadura Militar (1964-1985), indica-se: LIMA, D. B.; BECHELANY, F. C. O descaso induzido: o desterro dos Tapayuna e dos Panará. Mediações, v. 22, n. 2, p. 179-203, 2017. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/32257. Acesso em: 30 set. 2021.